Archive for the 'indie rock' Category

Renascer no ar

22 junho, 2010

São seis bilhões de almas em todo o mundo – pura multidão. É por isso que tentam vender pra você essas “exclusividades” cheias de filas, esses “ambientes selecionados”. É pra fingir que um lugar menor abarrotado com menos gente é melhor do que muita gente em um lugar maior.

Na era das multidões permanentes, é preciso mais do que dinheiro para se obter exclusividade de algo realmente relevante. É preciso amor sincero e paciência plena. É preciso desapego e certeza.

Para se obter algo único, uma “experiência completa”, é preciso jogar fora algumas coisas. É preciso mergulhar durante algumas horas em um lugar específico, durante um evento específico que não foi bem planejado, afinal você não está pagando por ele. Ou pelo menos, está pagando muito menos do que ele valeria nominalmente no mercado negro de experiências.

É preciso se assumir as demandas pesadas da realidade, lembrar que a cada momento você está deixando de saber uma última novidade que vai ficar velha daqui a 20 minutos, que você está deixando de comparecer a 30 outras coisas incríveis e de falar com 200 outras pessoas exclusivas. Sua exclusividade depende do seu compromisso com você mesmo.

Mas faz algumas semanas que eu tive a oportunidade de participar de um desses míticos acontecimentos, em um pequeno grupo. Foi em uma sobreloja no ponto mais alto de Perdizes. Você entra por uma porta vermelha e sobe uma escada comprida. Ali, no que mais parece uma república estudantil, funciona a sede da gravadora Cloud Chapel.

Eu não compareço muito a eventos desse tipo fora da minha casa, o que é uma pena. A natureza do meu trabalho por vezes me força a me fazer gastar muito tempo com unanimidades ou polêmicas vazias ou novidades com prazo de validade. Me sobra uma parca e curta vida que prefiro dedicar à Dani, ao Six e à Ramona, meus eventos particulares diários.

Você deve ter ouvido falar da Cloud Chapel. Quer dizer, vai saber. Você não precisa saber de tudo. Nem eu. A gravadora é uma ideia do Stan. Ele tocava nos Telepatas (eles existem ainda?). Agora ele tem um projeto solo, chamado Quarx! Quarx!. Ele diz que alguém disse que parece Microphones. Eu concordo.

A Cloud Chapel lança discos gravados em quartos. Eles têm um site bacana, em inglês e protuguês. Espero que os gringos descubram o lance logo. Até agora saíram dois discos, “Vestígios da Megafauna”, do Acessórios Essenciais, e “Malta”, do Península Fernandes. Os dois podem ser baixados no site da gravadora. Segundo o Rodrigo Sommer, o Acessórios Essenciais pode ser resumido como “Tom Jobim mais Animal Collective”. O Península Fernandes ninguém se arriscou a classificar até agora.

De vez em quando a turma da Cloud Chapel resolve abrigar alguma apresentação musical em sua sede. A última, essa que estou tentando descrever, foi do Bonifrate, vocalista do Supercordas que mantém uma “carreira” solo. Ao lado dele na voz e violão, ruídos etéreos são providos pelo companheiro de banda Giraknob, com a participação ocasional de Alexander Zhemchuzhnikov no sax.

Bonifrate é daqueles gênios, no bom sentido, que brotam com facilidade insuspeita quando os especialistas em encontrar gênios não estão olhando para o lado certo. Por outro lado, ele não é um revolucionário, nem reformador. Existe um aspecto zen nas suas composições que parecem zombar de todas as nossas noções de “progresso musical”, listas de artistas mais influentes, linhas do tempo.

É pura inspiração, são hinos, são músicas de fogueira, onde o tema subjacente é tão veículo quanto a voz, o violão, a melodia. “Ele é o nosso Jeff Mangun”, celebra o preciso Rodrigo. Assim como o Neutral Milk Hotel, suas composições demandam atenção instantânea. Por mais que sejam melódicas e estruturalmente simples, não servem de trilha sonora, precisam ser escutadas ativamente, exigem concentração.

Isso é exclusividade verdadeira. É estar em um lugar com um objetivo definido, acompanhado de pessoas que compartilham da mesma missão. E ela não tem um preço definido em divisas. Ela só acontece com dedicação, escolha, precisa de tempo investido, é mais essência que aparência. Quantos reais custa isso?

Bonifrate sabe das contas a serem pagas, mas também sabe que as contas não definem a vida. Os Supercordas ainda terminam seu novo álbum, sucessor de “Seres Verdes ao Redor”, de 2006. Enquanto isso, seu próximo solo vai crescendo, e já tem tema: o proverbial pé-na-bunda.

Ele terminou um relacionamento recentemente, e já tem duas novas composições: “Eugênia” e “Cantiga da fumaça”. A última já pod(ia)e ser ouvida, em versão lo-fi, no MySpace dele. É uma “It’s all over now baby blue” estóica. Por outro lado, ele diz não gostar de “Blood on the tracks”, o álbum de separação de Bob Dylan lançado em 1975.

(Para ouvir as inéditas “Eugênia” [catarse sem escalas], “Naufrágio” e “Cantiga da Fumaça”, baixe o ótimo áudio do show deles no Plano B, no Rio)

Ao final do show (acontecido no chão, alguns amplificadores e duas TVs ligadas em ruído branco fazendo as vezes de cenário) vem o costumeiro grito de bis. Eu peço “Cidade nas nuvens”, uma das minhas favoritas – ao lado da cover de “Aldebaran”, da banda Filme.

Ele faz uma cara de leve desânimo. Mais tarde explica que não gosta de tocar a faixa sem o acompanhamento do arranjo presente na gravação. Só voz e violão fazem dela um desafio. E ver ele se digladiar com o instrumento faz o desafio belo. A fragilidade da interpretação só dá força à música.

“Eu vou renascer no ar, numa fazenda de nuvens”, começa. “E do céu lacrimejar a chuva das minhas lembranças/ Na moleira das crianças/ E me esquecer que já nadei num mar de esperanças”. A primeira pessoa é retórica e logo se volta para fora.

“E as pedras que um dia atirei no rio que beira a estrada/ Ricocheteiam leves antes de afundar como uma pergunta quebrada”. Despida do enlevo do arranjo original, a música vira fato, se impõe sobre a realidade. “Pedras somos nós”, reconta o bardo, aquele que mente pela verdade, que diz o proibido.

“E pedras não podem/ Com a força do rio a carregar/ Com a força do rio a carregar”, sentencia Bonifrate, se contradizendo no simples fato de cantar/ contar. A sua arte é enlevo, é a própria contracorrente, o contrassenso do rio, do fluxo. É ela que carrega as pedras para o outro lado. Mas o segredo é que essa fuga, talvez a única possível, não se dá pela força. O caminho é mais sutil, dolorido, obscuro e caro. E mais sublime.

Bônus:

Cantiga da fumaça (Letra)

(Letra e música: Bonifrate)

As ruas andam vazias
O bonde sem condutor
E os especialistas todos acreditam que não vingará

Um novo plano escapista
Parece indigno de ti
Mas os planos, as palavras, a cozinha e o chuveiro não querem dizer

Que o tempo pode parar
De engatinhar

Então leva tudo que quiser
Que agarre na memória
E empilha nos porões
Musgosos e mofados
Que abrigam os amores vãos

A multidão descabida
Sem fundo para projetar
Seus maltes, seu silêncio, sua tara, sua prosa, mariposa que já vai voar

Num arremedo de paz
Que a fumaça traz

Então deixa tudo que quiser
Que eu pregue na cortiça
Que eu acho alguém para pedalar
Comigo e toda a minha grande alma destemida
Possantes pelas ruas
Velhas e vazias
Em movimento circular
Como os discos
Que soam nos porões
Ruidosos e mofados
Que abrigam os amores vãos

I was born in the 80s

17 junho, 2010

Eu nasci nos anos 80, e é por isso que eu sou (quase) cria dos anos 90. Vou aproveitar a Cromo 90, festa minha, da Dani, do Adriano e do Ugeda, para comemorar meu aniversário de 26 anos. Se você quiser entender um pouco da vibe do EVENTO, aproveita pra baixar a mixtape que eu fiz. MAS se você quiser HITS, é só pedir pra nossa convidada especial do dia, Kátia Mello.

C-90 Mixtape – Born in the 80s

01 – Yo La Tengo – “Sugarcube”
02 – The Rentals – “Friends of P.”
03 – Guided By Voices – “Gold Star For Robot Boy”
04 – Ween – “Push th’Little Dasies”
05 – Supergrass – “Alright”
06 – Astromato – “No Macio, No Gostoso”
07 – Superchunk – “Precision Auto”
08 – Sonic Youth – “Superstar”
09 – Slint – “Good Morning Captain”
10 – Soundgarden – “Black Hole Sun”
11 – Pelvs – “Next to Mantra”
12 – The Charlatans – “The Only One I Know”

Link: http://www.mediafire.com/?kyu1nynqhgk

Cromo 90 – o melhor do rock dos anos 90
Quando: quinta-feira (17), a partir das 23h
Onde: Rua Dona Germaine Burchard, 421 – Água Branca – São Paulo
Quanto: R$ 10 – Double Brahma e Double capirinha das 23h às 00h (a casa NÃO aceita cartões)
www.twitter.com/cromo90
www.neuclub.com.br

Algo tão bobo assim de se querer

18 maio, 2010

Existe um feeling, um sentimento, um barulho, um jeito de dizer as coisas, que me deixa bobo, nostálgico, estranho. Até uns 13 anos de idade, eu tinha passado a vida inteira procurando uma tradução para ele (e de certa forma eu ainda passo tentando definir isso, como nesse texto). Aí eu encontrei o indie rock, perdido em algum passeio em loja de CDs, matéria da Ilustrada, resenha da Bizz, um Lado B da MTV de madrugada.

Lê Almeida por Dani Hasse

Lê Almeida por Dani Hasse

Numa dessas o certo era eu ter sido metaleiro, punk, seilá. Com a grana da minha família, playboy é que não ia ser. É claro que eu gostava de uns lances punks (uns até zoados, tipo Rancid), de Metallica, mas acho que, ou gosto de acreditar que, eu curtia mais Jesus & Mary Chain. O que também não é nada de se orgulhar.

É por ter crescido assim que eu exija menos de bandas de indie rock do que eu exijo dos outros estilos. Não precisa de inovação, conceitos revolucionários, desconstruir as estruturas da canção. Nesse caso uma melodia bacana me conquista – o arranjo pode até ser copiado do Teenage Fanclub, ter uma levada meio Flaming Lips. O que importa é aquela SIMPATIA.

Como eu cheguei atrasado nos anos 90 – não vi nenhum show do Superchunk, quando eu descobri o Pavement a banda acabou – esse indie rock todo era um monstro tão grande quanto, seilá, a psicodelia inglesa, para se enfrentar. Era algo gigantesco, que na era pré-internet só dava para conhecer pelas beiradas.

E aí veio a internet, e vieram os Strokes, e vieram todos os anos 00. A disponibilidade de informação musical estimulou, para mim e para mais um monte de gente da minha idade, uma década de descobertas – eu tive uma longa fase 60s e 70s durante a faculdade, por exemplo.

Quando os 00s foram se aproximando do fim e me mudei para São Paulo, eu também comecei a mirar de volta para os 90s. Um pouco por culpa do namoro/casamento com a Dani, outro pela convivência com velhos como o Adriano e o Rodrigo, outro por aquela série de shows cover do fim da Peligro no Milo.

Mas a verdade é que estava na hora de olhar para trás. De revisitar, de me reconhecer naquilo tudo, de me sentir nostálgico por uma época que nem legal foi, de achar do caralho os fanzines que eu nunca tinha lido, das cartas que nunca mandei, das fitas que nunca copiei.

Porque isso não aconteceu só comigo. A minha geração de atrasados parece estar reinventando o que não viveu aos poucos. Eu não estou falando da volta do Pavement. Tou falando dos Baudelaires, por exemplo.

Fã clube adolescente?
Um camarada me apresentou eles via Twitter, dizendo que eles “são o Tineijão brasileiro!”. Fui ouvir e fiquei feliz. Eles não são a versão brasileira do Teenage Fanclub, mas com certeza seriam chamados de “brit” em 1995.

A gravação é lo-fi – não é ruim, mas quase que tem som de K-7, e aposto que vai ter muita gente reclamando sobre o quão eles são derivativos. Foda-se, tem uma banda em Belém do Pará fazendo um som que me faz feliz, e pra mim isso já ta massa. “She’s a Queen” tem aquela levadinha arrastada que você sabe qual é, aquela que te lembra de tomar café na rodoviária enquanto esperava o ônibus para voltar para casa depois de fazer o vestibular.

Já “I Feel Twisted by You” parece uma banda dos 90 tentando imitar os Beatles – um clichê cristalizado, como aquela banda de moleques semi-punks que parece Ramones ou o tiozão blueseiro tentando ser o Robert Johnson. Não tem nada de errado com isso. É assim que se aprende a compor, a tocar. Na história musical pré-gravação não existiam patrulheiros como nós: “ah, essa sua canção parece com uma que o menestrel William tocou há dois meses por aqui!”.

Acho que o nome mais conhecido desse neo-old-indie é o Superguidis. O quarteto de Guaíba (região metropolitana de Porto Alegre) apareceu na segunda metade dos 00 (tudo bem que os primeiros EPs são de 2003/4) e soava um pouco deslocado na cena pós-Strokes. Afinal, quem ainda se importava com Guided By Voices?

Mas as músicas eram boas, e “Malevolosidade”, “O véio máximo” e “O raio que o parta”, do álbum homônimo de 2006 tocaram em repeat no meu mp3 player de camelô durante meses. Eles foram o primeiro grupo em anos para o qual eu arrisquei tascar um “guítar band” no rótulo.

Aqueles efeitos, uns chorus estranhos, umas distorções meio empapuçadas sem ser “roque de roqueiro”, aqueles feedbacks – era tudo de volta. É claro que as melodias “simples e eficientes” (pra ficar no jargão) ajudaram muito, especialmente nos refrões pra cima de Andrio Maquenzi e Lucas Pocamacho (os principais compositores do grupo).

Outra vantagem é que eles não passavam pelo problema da pronúncia falsa. Sabe, aquela letra em português tentando encaixar em uma música que provavelmente foi composta em embromation anglo-saxão. Os Superguidis simplesmente cantavam com um carregado sotaque portoalegrense, e ele parecia resolver a questão.

Eles já estão com o terceiro álbum engatilhado, e não sei se eu estou esperando tanto. O segundo disco, “A Amarga Sinfonia do Superstar”, parecia que tinha alguma coisa a menos que o anterior. Acho que senti mais falta do sotaque. Mas isso é coisa de tio chato. Sou um patrulheiro, né? Melhor ouvir o novo single, “Não Fosse o Bom Humor” você mesmo. Vai que você discorda de mim.

Nunca tive coleção de alguma coisa pra deixar exposto na parede
Mas eu acho que dessa “redescoberta indie” o mais interessante é o Lê Almeida, que toca em São Paulo na Livraria da Esquina no dia 4 de junho. E nem estou dizendo isso porque eu estou entrevistando o cara por MSN ao mesmo tempo em que escrevo esse texto. É porque as músicas dele realmente são legais, e o jeito que ele faz tudo isso é tão divertido e 90s que nem dá pra acreditar que existe de verdade.

Ele mora na Baixada Fluminense (na cidade de Vilar dos Teles), e vive de consertar malas. Isso, nada de jornalismo, design, funcionalismo público, publicidade. Em plenos 00, começou gravando em fita cassete, em casa, como faz até hoje. Pelo menos agora tem duas mesas de som, oito canais. “Mas não uso todos”, avisa. E na hora de gravar, leva a bateria para o quintal. “O som é mais legal”, diz.

Eu ouvi as coisas dele pela primeira vez via “Alguns barulhos legais”, coletânea do selo dele, o Transfusão Noise, lançado em parceria com a lendária midsummer madness (dá pra usar “lendária” em relação à mm hoje, não?), mas acho que eu estava em outra, e deixei passar.

Voltei a conhecer o selo quando lançaram um tributo brasileiro ao Guided By Voices – agora sim, eu estava no tempo certo, estava até lendo uns LIVROS sobre a banda. Umas coisas pareciam estranhas, outras vergonhosas (o que é a cover do Kid Vinil pra “Everywhere with helicopter”?!), mas tinha muito potencial na coletânea. Ouvi umas coisas legais, mas pô, Lê, é muito complicado entender o site, tem muita banda!

A Dani (sempre ela) me lembrou que eu tinha que ouvir o Lê com mais calma me mandando o link do lindo clipe de “Nunca Nunca”, filmado em Juiz de Fora. A música é um creme, daqueles que transportam você direto para o presente certo, aquele em que você não se frustra no trabalho, na vida na cidade grande, na rotina.

É aquela falta de perspectiva adolescente que se transforma em ilusão de potência. É aquele “agora” que se impõe no passeio flaneur em uma tarde de sábado em uma cidade sem nada para fazer. É o tédio reimaginado não como vontade, mas como realização per se.

Menos lo-fi que o resto da produção de Lê, o EP “Révi”, lançado como vinil 7 polegadas, é todo assim. Das lições aprendidas com o tio Rob Pollard, Lê aproveita a ideia de que a canção se mede por si própria, não importa o tamanho que ela possa apresentar. Para quê encher linguiça se “Curso de Datilografia” cabe em pouco mais de um minuto, e “Voo na Sexta” em menos que isso?

A letra de “Canção para Beto Guedes” é quase pueril? Tá, e daí? E sim, “Hardcore experiência” lembra demais Flaming Lips. Você se importa? Eu não. A vida é muito curta, e eu quero curtir aquilo que muda a minha. E, de certa forma, assim como milhares de músicas já mudaram a minha vida, essas do Lê fizeram isso de novo. Não sou eu quem vai reclamar.

This one’s for the freaks

27 agosto, 2008

O que te emociona? O que te faz sentir vivo, que histórias te arrancam as lágrimas?

Para mim existe uma história máxima, um árquétipo de enredo, que, invariavelmente (se não for a única coisa que) me emociona. É a história do “Underdog”.

Não estou falando, digamos, da “zebra” esportiva. A história não é sobre sorte, muito menos sobre destino. É uma história sobre o contrário do destino, é sobre aqueles que deveriam ter ficado nos seus devidos lugares, sobre aqueles que não tinham (porque não nasceram no lugar certo, ou com os genes certos) chance alguma de realizar a sua tarefa. Não é sobre os favoritos, os donos e o status quo. É sobre os combalidos, oprimidos, os freaks e marginais.

O “underdog” se manifesta de várias formas ao longo da história, e sua única força reside na firme e inabalável fé na superioridade moral de sua missão. É o underdog o agente da revolução – cada uma delas, cada uma das que importam realmente – sejam elas pessoais ou sociais.

Underdog é Matin Luther King, Rosa Parks e todos os negros que se levantaram contra o apartheid velado norte-americano. Underdog é V derrubando o governo fascista da Inglaterra. Underdog são os argelinos, mesmo sob tortura, expulsando os franceses e seus mercenários. É Marlin, o pai do Nemo, contra tudo e contra todos, atravessando o oceano para resgatar seu filho.

Não quer dizer que na vida real e na ficção os underdogs não sejam derrotados – o comum é eles se ferrarem mesmo. Afinal, são eles contra o mundo, e não é necessário um longo debate para podermos chegar à conclusão de que este é um mundo cruel.

E é exatamente isso que me emociona – a vitória de cada underdog é uma vitória da esperança, é uma vitória do que é realmente certo num mundo de aparências. Nem sempre uma disputa entre um forte e um fraco onde a vitória seja dada àquele menos favorecido vai terminar em justiça, e, por estranho que seja, às vezes os grandes são mais benevolentes que os menores (é só pensar na diferença entre espartanos e persas nas Guerras Médicas).

Ainda assim, é sempre o underdog o vetor da revolução – porque são só aqueles que nada têm a perder que podem fazer uma revolução verdadeira. É isso que diziam Marx e Engels ao fim do Manifesto do Partido Comunista, e é isso que dizem os texanos do Spoon em “The Underdog“, faixa sete do excelente álbum Ga Ga Ga Ga Ga (2007).

O Spoon já tem quase quinze anos de estrada, contratos malfadados e recente sucesso – Ga Ga Ga Ga Ga estreou em décimo lugar na Billboard. Nascidos indies ortodoxos, aos poucos absorveram influências de soul mas continuaram experimentando com o próprio som, como uma espécie de Wilco black.

The Underdog“, pelo contrário, é faixa para cantar junto, bem alto. Violões e bateria explodem e levam à um riff de metais, que deslizam para a calmaria: violãozinho, maracas e a voz semi-afetada de Britt Daniel. Entra baixo, volta a bateria e Daniel começa sua acusação, que sai de uma cena banal (“chinelos e cachimbo”, “sala de estar”) e vai direto para a jugular da indiferença pequeno-burguesa: “Livre-se dos atravessadores”.

Entre o tédio de um Green Day, o didatismo radical do Crass e as políticas do cotidiano do Gang of Four, o Spoon profetiza a revolução, a queda e avisa àqueles que desprezam os oprimidos: “É por isso que você não sobreviverá”.

“Você não tem tempo para o mensageiro”, “não fala com o entregador de água”. O Spoon sabe que não está falando apenas para e com o alto executivo arrogante, mas também, por um lado, com aqueles que detêm pequenos poderes dos quais não são conscientes (eu, você) e por vezes o acabam exercendo involuntariamente e por outro, chama indiretamente à revolta àqueles que estão abaixo (sua faxineira, seu porteiro).

O Spoon não prega comunismo ou outra vertente política, mas entende que sim, existe uma tensão, existem opressores e oprimidos – e que “aquele que não teme o underdog não sobreviverá”. Se muitas vezes a vitória do mais fraco é desviada de seu viés político, aqui a temos escancarada, em forma de melodia assobiável e tocando no rádio.

O Spoon não é uma banda política como o Rage Against The Machine ou o Manic Street Preachers, mas traz para o cotidiano e mostra como as relações de poder se estabelecem e se reproduzem muitas vezes inconscientemente.

Numa canção que se estrutura em crescendos, onde os instrumentos mudam de papel, somem e reaparecem, e que quer profetizar a revolução, só existe um fim possível. E ele está lá, encerrando a canção e inflamando a imaginação do ouvinte: um disparo de arma de fogo, seco. Se é vingança, revolução ou repressão, só você mesmo pode responder.