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As coisas que não foram cantadas

30 agosto, 2008

Existem certas músicas que você ouve pela primeira vez e acha que ouviu elas por toda a vida, mesmo que elas sejam completamente inéditas. É bem fácil atribuir isso a uma certa “limitação” de formas e ferramentas na criação e gravação da música popular. Essa suposta limitação na verdade é um artifício que vem das tradições musicais de fundo oral – a repetição e imitação transformam-se na melhor forma de se transmitir noções musicais que podem se perder de uma geração para a outra.

Além disso, tal repetição realmente gera familiaridade, comunidade – uma canção decorada e cantada por todas as pessoas de um mesmo grupo tende a servir como um fator de coerência social. No blues, por exemplo, as estruturas repetidas por virtualmente todas as canções se prefiguram através de uma forma de resistência à dominação cultural branca imposta sobre os escravos. Conceitos como originalidade e autenticidade foram importados ao rock e à música pop através da tradição clássica européia.

Não falo do novo que é simples imitação. Falo de “For Every Field There’s a Mole“, canção de Lie Down the Light, novo álbum de Will Oldham (sob a alcunha de Bonnie “Prince” Billy). A canção é inédita, e quando se ouve, a sensação é a de que já somos antigos conhecidos dela. Não parece plágio, não soa como “ahh, tinha aquela, daquele cara, como era o nome mesmo?”. Soa como se ela viesse do fundo das nossas cabeças e, na medida em que a ouvimos, ela vai sendo lembrada – mesmo que nunca tenha sido ouvida antes.

Os junguianos tomariam esse fenômeno como um exemplo do inconsciente coletivo, assim como Platão falaria do “arquétipo da canção” que mora no “mundo das idéias” e o mais cético diria que é um plágio inconsciente, para o ouvinte e o suposto plagiador.

Eu prefiro o mistério, prefiro navegar por entre a neblina das minhas próprias não-memórias, prefiro a sensação que eu tenho quando a progressão de acordes, a percussão e a voz sutil e evocativa de Will Oldham me despertam para o meu sonho.

Porque a melhor música funciona desse jeito – como algo que te une a quem a produziu e a quem produziu toda e qualquer música. Ou seja, a melhor música é a que te une ao mundo em si, não importa se uma canção, sinfonia ou canto de passarinho.

For Every Field There’s a Mole” é uma canção que só pode ter sido escrita por alguém que entende esse sentimento. “Para todo homem que sobreviverá/ Não há nada que ele não possa superar/ Nem obstáculo que ele não possa apagar/ Para cada rei há uma coroa/ E sempre que eu olho à minha volta/ Sou o rei do infinito espaço”.

Um Hammond e um clarinete alternam-se entre as estrofes, tecendo melodias delicadas, que envolvem o ouvinte numa mistura de enlevo, calor e familiaridade. No mesmo tom de profeta em transe, a quem mais interessa falar a verdade que alertar e amaldiçoar os outros mortais, Oldham vê a Terra ferver – mesmo sabendo que “para cada seca há uma chuva”.

Na última estrofe entram novas vozes, e a harmonia convida o ouvinte a cantar também. As palavras têm um único sentido (aquele que você mesmo dá a elas), e o cantar em si é o significado – a comunicação é mais importante que o conteúdo. “Há um tempo para cantar estas coisas/ E há um tempo para tê-las cantado/ Há um tampo para se trazer a canção/ E um tempo para se tê-la trazido/ Há um colo para a cabeça que descansa/ Há uma única cama para se aninhar/ Há almas para serem choradas/ Pelas coisas que não foram cantadas/ E uma mão para segurar a garganta/ E dissipar o soluço do pranto”.

O ouvinte sabe do que se fala mesmo sem compreender a língua – e não seria difícil alguém ver chorando apenas pela beleza. Agora vá, diz o profeta. Pegue esta canção e faça dela tua, e da tua canção faz o próprio mundo. Porque “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez”.